sexta-feira

Rio de Janeiro, 29 de Outubro de 2010

Mônica,

Eu tenho uma coisa com a madrugada. Além de fome, e estou morrendo de fome. Mas tem uma coisa que me move madrugada adentro, que ousa me cutucar de leve nas horas mais comuns.
Eu parei de ter medo da madrugada, pelo menos por enquanto. É como se eu ficasse sóbria, e nem o escuro nem nada pudessem me assombrar. Meu ceticismo me incomoda, parece só que ue parei de sentir. Convivi com omedo tanto tempo que não tê-lo se torna embotado.
Esses dias senti uma fagulha, log a suprimi. Parece que tem uma ditadura do estado de espírito brando se desenvolvendo em mim, e eu quero todas as sensações de volta.

Mas não é que esteja triste, não estou. Passei por isso, estou além de triste, além de feliz, além de qualquer coisa. Estou como fogo brando, amornando as coisas. Tenho escrito um monte, tenho lido um monte, tenho descoberto um monte. E guardo tudo isso num momento, estou com a vida suspensa. Parei a faculdade, parei o sono, parei a madrugada inteira num momento só e estou assistindo a poeira suspensa no espaço. Como era o nome daquele livro?
A insustentável leveza do ser.

Nunca li. Mas acho que parece um pouco com poeira suspensa no espaço, esse nome. Um tempo parado, a poeira lá. E eu no meio, parando a madrugada e me perguntando o que fazer a seguir.
Eu quero ir-me embora. Eu quero dar o fora. Especialmente dessa pausa louca.

Tenho vontade de ir à meca, atualmente, mônica. Não como se Meca me fizesse encontrar a verdade, mas como se peregrinar fosse um passo importante para descobrir alguma coisa.

Sinto que meu corpo busca a morde como um louco, e até acho que é essa a função da matéria, negando nilton bonder e deus. Acho que a minha matéria quer morrer pra fazer logo uma flor. E tem alguma coisa elástica nisso que resiste, impera vida. Opera a vida.

Volte a viver, mônica, eu ão suportaria essa traição. Tem algumas que eu aguento, firme no muque. Mas preciso de uma motivação pra não me trair.

mônica, a madrugada opera em mim a loucura. Tenho que tomar cuidado pra não me acertar, que não desvio. Sou boba boba, não desvio nunca

desisto.

Minha pior carta pra você, querida, a única com desespero.


Ray

terça-feira

Rio de Janeiro, 19 de Outubro de 2010

Mônica,

Confesso: a minha vida é feita de verdade crua. Ela amanhece todos os dias e se reinventa. Eu não sei mesmo como foi que cheguei aqui, neste ponto. não que seja um ponto ruim, longe de mim, é só que me falta explicação para ter alcançado o óbvio, o isto. Eu fico sentada de costas pra rua e o mundo todo parece não acontecer, sentado no meio da rua, me esperando.
A coisa mais libertadora que eu já ouvi foi que Exupery era um idiota. Essa idéia louca de que "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", meu deus eu me isento de culpa de amor. Eu não quero jogar em ninguém a responsabilidade do meu afeto, ela é uma consequência só minha. Quem se regojiza com ele sou eu, que se desespera com ele sou eu. E quero para mim todos os seus louros.
Amor, mônica, é um egoísmo que é egoísta de si mesmo, foi o que disse à minha primeira namorada. Se teu amor liberta, é porque não é amor, essa coisa envolvente e desesperadora, que quer tudo pra si, que quer comer, cercear, mastigar, compreender. Amor é um jogo de obsessão.
Mas, meninas e meninos, façam o favor de guardar suas obsessões escondidas debaixo de metros de pano, não sou culpada de amor nenhum senão o meu, porque o alimento. Amo a todos os que amo, com egoísmo desvairado. Com demanda e desespero, sem lucro nenhum. não precisa muito pra me conquistar.
Amo e não incomodo, mônica. Porque entendo que amar é um egoísmo relativo. Não é que a gente ame o que a pessoa é, mas sim o que a pessoa é na gente. O que é pessoa que causa na gente, é isso que a gente ama. Porque pessoas e bichos e plantas, são todos mundos. Gigantescos, indivisíveis e impenetráveis. Eu não sei quem são os meus amores, quando não estão comigo. O Amor maior é a mim, porque é o que de mim que há, ou que falta, no outro, que eu amo.

Esqueça isso tudo.

Mônica, ando espantada com o mundo. Uma estupefação, o mundo me cerca. O mundo está aí pra ser fodido. não existe uma tese contrária a isso. A terra não é um organismo mágico com um propósito espiritual: o grande propósito é não haver propósito. Acho que algum escritor já disse isso. que me importa? O Mundo não existe para que pensemos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo. Isso foi Fernando Pessoa.
Mas o negócio é que o mundo ta aí pra ser fodido, magoado aos bocados, mastigado ligeiro. Quero comer o mundo e engolir sua terra seca e, com um gole de água e chorando, dizer que o amo. O Mundo é carne da minha carne, eu sou autoantropófaga. mônica, quero consumir.
É tudo uma vastidão randômica, é isso que é. Estendemo-nos aos milhares e meu deus, consumamos. Tudo se consome, autoconsome. Somos resultados de contas malucas e não, não precisamos entender. Só consumir. não existe sistema, filosofia, justiça, nada: a gente só se consome. E isso é triste, triste mais que a tristeza. Mas é, e ser é só triste e fim.
E não digo isso como uma depressiva, tristeza é tristeza e ponto final, sem julgamentos.

Ah, é muito bom ser triste, mônica. Eu me perguntava hoje, olhando nos meus olhos e na minha boca, se eu sou alguém feliz que é triste de vez em quando, ou eu sou triste e volta e meia me sobe felicidade. Ainda não sei. Mas acho que as coisas são ao mesmo tempo, como a zebra, que é ao mesmo tempo branca com listras pretas e pretas com listras brancas.
Eis aí o segredo da zebra: ela não é simplesmente branca ou simplesmente preta, cada qual com sua listra. Ela tão pouco é listrada. Ela é os dois ao mesmo tempo, branca e preta, com suas listras. É por isso que ela se confunde.

mônica, a zebra guarda o segredo do mundo. A zebra é, e isso basta. É ao mesmo tempo que é outra coisa, isso é o mundo inteiro. mônica, a zebra não te dá uma vontade louca de chorar? Para na zebra, pensa na zebra, olha pra zebra e vê que ela é a zebra. mônica, a zebra é um absurdo rio de lágrimas escorrendo. Uma cascata de lágrimas. A zebra me chora, me dói, como milagre que a zebra é. mônica, para, pensa na zebra. Olha os olhos injetados, o porte equino, as listaras, que listras, meu deus. mônica, a zebra é a descoberta do absurdo.
E o absurdo é todo um milagre.
cospe fora essa coisa horrível que te ensinaram e chora, que é tudo milagre e o milagre é triste e feliz, que nem a zebra listrada. Chora fora o miagre do mundo, precisamos de umas carpideiras pra chorar o milagre a todo instante, pra que ele seja abençoado. O milagre é próprio do choro. é o estigma do choro. O milagre é milagre quando escorre dos olhos e quando suspira na boca e quando esboça os lábios num sorriso. Ademais, o miagre não é. Como a zebra que só é zebra na savana correndo. Toda listrada.

Chora a zebra comigo, mônica.



Eu te amo, mônica, como um milagre. Por favor, não se sinta culpada.